segunda-feira, janeiro 11, 2010

Ceninha pra torrar a paciência

Certa feita, um amigo (Affonsinho – excelente músico. Recomendo seus discos.) cismou que queria ser ator. Então eu escrevi essa ceninha aí embaixo pra ele, seu filho Fred e o também músico Bill Lucas. Isso seria parte de uma peça de esquetes que acabou não indo pra frente, já que o Affonsinho estava lançando seu disco novo e ficou sem tempo. Como uma das minhas resoluções de fim de ano era voltar a escrever aqui no Patos, resolvi torturá-los um pouquinho. Sejam condescendentes, plizzzz.

Centro Espírita

Acendem-se as luzes em fade. O suficiente para iluminar os atores e deixar claros os seus gestos, porém ainda penumbra. No centro do palco, ao redor de uma mesa redonda, estão Pai Bill, Otaviana e Flavinha (Bill Lucas, Affonsinho e Fred, respectivamente). No centro da mesa está uma bola de cristal. É dela que vem uma luz um pouco mais forte, o suficiente para fazer algumas sombras nos rostos das personagens. Deixar assim um tempo para criar um clima. Isso deve ser suavizado logo na primeira fala.

Pai Bill está em transe. Ele balança tal qual Stevie Wonder, enquanto emite glossolalias sem fim, em várias intensidades de intonação. Esse transe deve permanecer todo o tempo, exceto, obviamente, quando ele tiver falas.

Otaviana e Flavinha olham para ele entre ansiosas e desconfiadas, na expectativa de que algo aconteça.

FLAVINHA: Tem certeza que isso é uma boa idéia, mamãe?

OTAVIANA: Nós já conversamos sobre isso, filhinha. Nós duas queremos um último contato com seu pai. E a Nildinha lá do escritório disse que esse é o melhor pai de santo da cidade.

FLAVINHA: Espírita, mãe. Espírita.

OTAVIANA: Ou isso. Sei lá. O certo é que ele vai nos ajudar a conversar com seu pai.

FLAVINHA: Tomara, né? Afinal, você enterrou aí a mensalidade da minha escola.

OTAVIANA: Eu sei, filhinha. Mas tente entender: é muita saudade!

FLAVINHA: Eu já entendi, mãe. Se não eu não estaria aqui. Ô!

Nesse momento, Pai Bill aumenta o tom da voz, sempre ininteligível, e faz alguns gestos.

OTAVIANA: Ó. É agora.

Algumas luzes piscam, barulho de rádio sendo sintonizado, barulho de telefone ocupado. Pai Bill volta ao tom de voz mais baixo.

OTAVIANA: Ué...

FLAVINHA: Acho que falhou.

Pai Bill Aumenta de novo o tom da voz. Gestos, luzes, etc. Dessa vez, uma voz grave, porém macia, surge.

OSCAR: Alô?

OTAVIANA: Quem fala?

OSCAR: Você quer falar com quem?

OTAVIANA: Com o Oscar, por gentileza.

OSCAR: É ele.

OTAVIANA: (emocionada) Oscar?

OSCAR: Sim?

OTAVIANA: (mais emocionada) É você Oscar?

OSCAR: Sim. Quem fala?

OTAVIANA: Sou eu, Oscar. Otaviana.

OSCAR: Querida? É você?

OTAVIANA: Sou eu sim, Oscar. Sou eu.

OSCAR: Querida, que saudade! Por onde você tem andado?

OTAVIANA: Eu tô viva, Oscar.

OSCAR: Ah, é... Tem esse detalhe... E quem é essa gostozinha aí do seu lado?

OTAVIANA: Quê isso, Oscar! É a Flavinha! Não lembra dela?

OSCAR: Flavinha...? Hmmm... Como você está bonita!

Flavinha faz tipo, entre constrangida e ingênua-safada. Otaviana desconfia e não gosta.

OSCAR: O que foi, querida. Cê tá com uma cara...

OTAVIANA: Não é nada, não. Quer dizer: é sua voz, Oscar. Ela tá tão diferente...

OSCAR: Bom, eu morri, né?

OTAVIANA: Não. Quero dizer, sim. Mas além disso. Desculpe o trocadilho...

OSCAR: O que você quer dizer com isso?

OTAVIANA: Sua voz, Oscar. Ela ta mais grave, mais sensual, mais bonita. Isso acontece por causa da... bem, você sabe...

OSCAR: Não. Não sei. Por causa de quê?

OTAVIANA: Você sabe... A voz muda depois que você... bem... bate com as dez?

OSCAR: Hein?

OTAVIANA: Bate com as dez! Veste o paletó de madeira, vira presunto, vai pra cidade dos pés juntos, diz adeus ao mundo, apaga, vai para o beleléu, bate as botas, estica a canela, come capim pela raiz, larga a casca, desce à cova, descansa, desencarna, passa desta para melhor, empacota, fecha os olhos, pifa, vira presunto, vai para o além, vai desta para melhor, da o último suspiro, expira, vira adubo, vira comida de minhoca, vai a 7 palmos, bota o pé na cova, passa da data de validade...

OSCAR: Você está querendo dizer...

OTAVIANA: Sim, Oscar! Morrer, pô! Acontece isso com a voz depois que morre?

OSCAR: Não, não... Eu sempre tive essa voz.

OTAVIANA: Puxa! Ta bem diferente. Lembra do nosso casamento? Quando você foi dizer o “sim”, sua voz saiu tão fininha que até o padre riu.

OSCAR: Peraí! Eu não sou casado.

OTAVIANA: Claro que é, bobinho. (para Flavinha) Coitado. Essa mudança toda, esse negócio de morrer, a correria... isso deve ter mexido com a memória dele. (para Oscar) Eu sou a Otaviana, sua mulher, e essa é a Flavinha, sua filha.

FLAVINHA: Lembra, pai?

OSCAR: Não senhora! Disso eu me lembro bem! Eu nunca fui casado, e muito menos tive filha. Ainda mais gostozinha como essa.

Flavinha aquela mesma cara de vergonha e safadeza ao mesmo tempo.

OTAVIANA: Mas você disse que lembrava de mim.

OSCAR: Sim, eu conheci uma Otaviana. Essa era da pá virada. Virávamos noites sem dormir. Porres homéricos, trepadas espetaculares... Mas não me casei com ela, que eu não sou doido. E nem tive filha. Pelo menos, não que eu saiba. E Otaviana não é um nome tão comum assim. Tem certeza de que não era você? Ta meio difícil enxergar seu rosto. As nuvens atrapalham um pouco.

Otaviana esconde o rosto com a mão.

OTAVIANA: Não. Não era eu, não. Eu sempre fui muito comportada, sabe? Chata até.

Flavinha olha-a com cara de espanto.

OTAVIANA: Então certamente isso foi um engano. Um erro desse macumbeiro safado!

FLAVINHA: Espírita, mãe. Espírita.

OSCAR: É. Linha cruzada... Peraí! O meu vizinho aqui também chama Oscar. Quem sabe não é ele?

OTAVIANA: Nossa que coincidência! Dá pra passar pra ele?

OSCAR: Claro! (ele fala pra si mesmo) Como é que transfere mesmo? Aperta aqui e...

A voz de Oscar é substituída por Por Elise. Atende uma voz masculina, porém mais fina e esganiçada (e, certamente, nada sensual) que a primeira.

OSCAR 2: Alô.

OTAVIANA: Oscar?

OSCAR 2: Sim?

OTAVIANA: O meu Oscar?

OSCAR 2: Sei lá. Quem fala?

OTAVIANA: Essa voz de taquara rachada não me engana. É você sim, Oscar. Sou eu. A Otaviana.

OSCAR 2: Tatá!!! Mas eu acabei de me mudar. Ainda nem me instalei direito. Como é que você me achou aqui?

OTAVIANA: É uma longa história. Mas no final das contas, foi o seu vizinho Oscar que transferiu a ligação pra você.

OSCAR 2: Você falou com o Oscar?!?!

OTAVIANA: Foi engano. Eu achei que era você.

OSCAR 2: Ele te cantou?

OTAVIANA: Deixa de ser bobo! Ele foi, digamos, simpático.

OSCAR 2: Aquele safado! Querendo me passar pra trás! Será que ele pensa que eu morri ontem?

OTAVIANA: Você morreu ontem, Oscar.

OSCAR 2: Hein?!?! Ah, é... Bem. Mas que bom que você ligou! Eu tava com saudades.

OTAVIANA: Eu também. Nossa vida foi muito boa juntos. Foi muito dura e austera...

FLAVINHA: Austera é outro jeito de dizer pobre!

OTAVIANA: Passamos dificuldades, sim. Mas sempre fomos honestos. Sempre admirei sua integridade, Oscar. Às vezes faltava até dinheiro pra pagar a escola da Flavinha, mas você nunca foi desonesto. Sempre ali: firme! Nos guiando através das dificuldades.

FLAVINHA: É mesmo! Eu nunca pude ter roupas da moda, nem acompanhar minhas amigas nas baladas. Mas sempre pude encher o peito de orgulho do pai que eu tive. Minhas amigas, filhas de ministro, deputado... essas andavam sempre na moda. Tinham tudo do bom e do melhor. Mas nenhuma delas podia dizer que o pai era um exemplo! Era nisso que eu pensava enquanto as via, pela janela do ônibus, indo embora nos seus carrões importados.

OSCAR 2: Bem, sobre isso eu tenho algo a confessar.

OTAVIANA: Diga, querido.

OSCAR: Isso é muito vergonhoso pra mim.

OTAVIANA: Pode dizer. Você sabe que eu sempre te respeitei. Qualquer coisa que você disser certamente vai ser menor que esse sentimento. Além do mais, tenho certeza de que não é nada.

OSCAR: Eu sei, Tatá. Você sempre me foi fiel, lutadora. Mas e a Flavinha?

FLAVINHA: Eu te amo, pai. Tenho certeza de que não há de ser nada.

OSCAR: Eu enganei vocês durante um tempo...

OTAVIANA: Durante um tempo, Oscar? Quanto tempo?

OSCAR: Bem, a vida toda...

OTAVIANA: Enganou como? Não vai me dizer que você tinha outra família. Isso eu sei que não é. Você nunca teve dinheiro pra sustentar uma direito, quanto mais duas.

OSCAR: Não, eu nunca tive outra família. Mas não é por falta de dinheiro. Eu sou um cara rico. Milionário. Tenho muito dinheiro na Suíça.

OTAVIANA: Como assim?!?

FLAVINHA: Não to entendendo.

OSCAR 2: Eu sempre desviei dinheiro público. Sempre tive caixa dois. Era sempre o primeiro a entrar numa boa negociata.

OTAVIANA: Você! Mas como? E porque nunca nos contou?

OSCAR 2: É que vocês me admiravam tanto... Tinham tanto orgulho de mim... Eu não queria despontá-las.

FLAVINHA: Mas que viado!

OTAVIANA: Filho da... Quer dizer que todo esse tempo a gente viveu nesse miserê todo e o babaca aí cheio de grana guardada?

OSCAR 2: Mas eu vou corrigir isso!

OTAVIANA: Deixa de ser palhaço, Oscar! Cê tá morto. Como vai corrigir alguma coisa?

OSCAR 2: Eu te passo o número da conta e a senha. Você vai lá e saca tudo. Vai ter uma vida de rainha. Você e a Flavinha. Tudo o que vocês não tiveram durante a minha vida, terão agora.

OTAVIANA: É... Bom... Não deixa de ser uma boa idéia.

OSCAR 2: Anota aí: o número da conta é 15687.

OTAVIANA: 15687. Anotei. Diz a senha.

OSCAR 2: A senha é...

A voz de Oscar é interrompida. Pai Bill sai do seu transe e bate uma companhia, dessas de balcão de hotel, interrompendo a conversa de Otaviana e Oscar.

PAI BILL: Acabou seu tempo. Obrigado e volte sempre.

OTAVIANA: Como é?!?!

PAI BILL: Seu tempo... Acabou... Volte sempre. (gritando em direção à porta) Próximo!

OTAVIANA: Não, peraí. Agora que ele ia falar a senha do banco. Não senhor! Põe ele na linha de novo!

PAI BILL: Não dá. A não ser que a senhora pague uma prorrogação. PRÓXIMO!

FLAVINHA: Paga ele mãe.

OTAVIANA: Não dá, minha filha. Só sobrou o dinheiro do ônibus.

FLAVINHA: Quê que tem? A gente volta a pé hoje. Pra botar a mão nessa grana vale o sacrifício.

PAI BILL: PRÓXIMO!!!!

OTAVIANA: Tem certeza, minha filha?

FLAVINHA: Claro, né mãe? Ô!

PAI BILL: PRÓ-XI-MO!!!!

OTAVIANA: Não, peraí Pai Bill. Tá aqui, ó! (dá o dinheiro pra ele) Isso dá mais quanto tempo?

PAI BILL: (olha as notas com certo desprezo) Mais uns cinco minutos, no máximo.

FLAVINHA: Vai, mãe. Ele só tem que falar a conta mesmo. Dá tempo e sobra.

OTAVIANA: Ta bom, vai.

Pai Bill começa de novo a sacolejar como Stevie Wonder e a glossolalia. Depois de um tempo, a mesma voz grave do primeiro Oscar atende.

OSCAR: Alô?

OTAVIANA: Oscar?!?!

OSCAR 1: Querida, você voltou. Eu sabia! A gostozinha da Flavinha ta aí com você?

FLAVINHA: (entre sem graça e lisonjeada) Tô.

Otaviana dá um safanão em Flavinha.

OTAVIANA: Sai da linha, Oscar. Chama o outro Oscar. Rápido!

OSCAR 1: Ta bom, ta bom. Já vai. Como é que transfere essa mer...

(Por Elise)

OSCAR 2: Pronto! Tá aí. Anotou tudo?

OTAVIANA: Anotei nada, Oscar. Caiu a linha! Repete!

OSCAR 2: Caiu a linha?!?! Mas essa telefonia daí é fogo, viu? Cê tá falando pela Vivo?

OTAVIANA: Não interessa, Oscar! Só repete a senha! E rápido!

OSCAR: Tá bom, tá bom. (pra si mesmo) Onde é que eu pus aquele papel? Ah! Tá aqui. Ó, anota aí. A senha é...

PAI BILL: (toca a sineta de novo) Muito obrigado por utilizar os nossos serviços. Volte sempre. PRÓXIMO!

Otaviana cai em prantos. Flavinha faz cara de decepção.

Fade.

3 comentários:

Vivi disse...

Peraí que vou recorrer ao google para descobrir o que são glossolalias.

Fábio Mayer disse...

O que são glossolalias?

Bem... é trágico descobrir que o serviço telefônico do além consegue ser igual ou pior que o dos vivos...

palhaço disse...

Nem li... =P