domingo, dezembro 17, 2006

O Natal dos Políticos - Zé Dirceu


JOSÉ, O FILISTEU

Véspera de natal. A neve cai, como sempre. José, o Filisteu, ainda vagueia pelas calçadas chiques da Oscar Freire, comprando os últimos presentes em Euros (dólares se tornaram vulgares depois do episódio da cueca, que coisa ridícula, impossível recrutar gente superior para tudo, a mediocridade substituindo os grandes comandantes da revolução!).

Com seu gorro russo, de pele de urso (tão anti-ecológico, mas as causas são nobres, pensa o Filisteu) e seu casaco de pura lã Armani, sapatos de cromo alemão, José, o Filisteu procura um presente especial. Hoje é o último dia e esse presente não pode faltar. Afinal, ele tem sentimentos. É mentira que seja uma pedra de gelo. Ele sabe o que fez e sabe que tinha que fazê-lo, mas isso não o impede de se sentir culpado e atordoado. Uma vida a menos. E justo um ativista.

Mas por que ele tinha que se colocar como obstáculo, questiona amargamente José, o Filisteu. Podia estar até hoje jantando até diariamente no Rubayat, tomando Romanée Conti, levando sua vida pessoal no ritmo que melhor lhe aprouvesse. E não se pode dizer que não tivesse consciência de que os fins são imperativos. Sabia e, por várias vezes, tinha participado da tomada de decisões que envolviam justamente a segurança de todo o aparelho.

Mas isso não diminui a amargura de José, o Filisteu, não torna os flocos de neve menos gelados, não turva menos sua visão. Melhor seria se todos pudessem estar juntos, hoje, sempre, vibrando com a revolução. Agora, não mais. Há um cadáver, inquéritos, gente que nem se importa com a revolução envolvida, na esparrela de um troco a mais, um carro importado, uma fazenda, uma mansão nos Jardins, viagens de primeira classe.... tudo isso permeia o atual estágio da revolução e José, o Filisteu, sabe disso, tem consciência disso, tem que conviver com isso. Ele mesmo abandonou há tempos a TV de 20 polegadas, antes símbolo do capitalismo escravista, por uma TV plasma de última geração...

Não, melhor não pensar nisso. Importante é transpor os obstáculos da Oscar Freire e encontrar um lenitivo, um analgésico, uma lembrança de dignidade. As lojas estão lotadas, todos os bem-nascidos de São Paulo e das capitanias hereditárias brasileiras estão aqui para gastar Euros (dólares, não, por favor).

Uma boneca? Poderia ser uma boneca. Há bonecas importadas que conversam com a criança, outras, mais pensadas sociologicamente, são negras e têm cabelo duro, como convém. Toda menina gosta de bonecas. Uma menina sem pai deve gostar mais ainda, pode transferir para ela seu mal-estar por todo o imbróglio criado em sua até aqui curta vida. Ela já tem um pai e uma mãe, que um dia lhe explicarão sua versão para a revolução. Mas ele também estará lá, sondando para que ela saiba a verdade, saiba que não era possível evitar aquela morte.

Celso sabia disso, ia querer que a filha também soubesse. Ele tomará a si essa responsabilidade. Por enquanto, uma boneca. Bem cara. Bem diferente. Que chame mais ainda a atenção de todos sobre a menina sem pai, que foi tragado pela revolução.

Quase dez horas, as lojas ameaçam fechar, a dor começa a ficar insuportável. Tem que enviar um presente para essa menina, tem que dar alguma dignidade aos seus gestos e à sua luta – a história o compensará, está certo disso.

Finalmente, uma Toysland, um loja monstruosa, incomensurável, daquelas que só se vê em Nova Iorque, finalmente! Entra aflito, o segurança tenta barrá-lo: “Senhor, estamos fechando”. “Não para mim”, murmura laconicamente. O mundo não se fecha se ele não tiver completado sua saga, seja ela diária, anual, de vida. O que se fecha é o mundo para os outros, o mundo de Celso, mas ele sabia que tinha que ser assim.

Percorre rapidamente a seção de brinquedos para meninos, carrinhos, bolas de tecidos sintéticos usadas em competições internacionais, fantasia de soldado americano. Sobe alguns degraus, dá de cara com lindas bonecas, todas loiras, todas amáveis, todas à espera da menininha sem pai que vai passar a vida ouvindo inúmeras versões para os diversos abandonos por que passou.

Abandonada simbolicamente pelo pai, abandonada fatalmente a partir de sua morte,
abandonada pelos tios, tias, alguma coisa sempre faltando, cadê os amigos do meu pai? Por quê o inquérito não tem fim? Onde estão o começo, o meio e o fim? Vou saber? Não vou saber, bastam-me – ou deviam bastar-me – os ideais da revolução.

Mas a boneca grandona, com cara-de-nada sorrindo, cabelo brilhante, mais de 300 Euros, parece ocupar o espaço necessário. Ou possível. Algum espaço há de ocupar, nem que seja o da dúvida.

Embrulho para presente. Dá tempo de entregar? Contrate um motoboy, por favor, não importa o preço. Tem que chegar hoje. Fica em Santo André, pago o dobro, o triplo da tarifa normal.

O embrulho de papel macio rosa e branco, as fitas delicadas, não é possível que tudo isso não preencha ao menos o espaço de uma noite. Eu aprendi a preencher minha vida com a revolução, deveriam todos aprender. Duro, mas digno. A menina vai gostar. Não precisa saber de quem é. É de Papai Noel, essa invenção capitalista que arrasta os cidadãos para a tragédia das suas vidas sem ideal. Não faz mal. Há tempo de explicar-lhe. Um dia ela vai saber.

O motoboy chega, cobra mil reais para realizar o serviço, pega o endereço rabiscado num pedaço de papel de embrulho da loja, copiado de uma caderneta pequena e antiga, de couro, carcomida como as almas que a habitam.

“Só mais um momento”, peço, é preciso escrever algo. É preciso marcar a tinta os traços da revolução, para que sejam reconhecidos mais tarde.

Pede à balconista um cartão com envelope, cor de rosa, com bordas vermelhas e douradas, o espírito do natal permeando os necessários ideais da revolução. Com a mão firme, segura de que essa é só mais uma dor, entre muitas, e que os fortes a ela não se submeterão, escreve:

“Querida, aproprie-se de todos os papais, até dos Papais-Noéis se for necessário, mas não me abandone, não nos abandone. Celso gostaria que você agisse assim. Você jamais será abandonada, se estiver do lado certo da vida. Esteja lá. Nos veremos. Um beijo.”

Shirlei Horta, novembro de 2006

9 comentários:

Anônimo disse...

Beleza heim Shirlei?

Parabéns!!!

Túlio disse...

Quando recebi o texto, fiquei muito preocupado. Como ia chegar ao nível dela?

Anônimo disse...

Túlio,

Pois é...até fiquei envergonhado com o que escrevi!

Túlio disse...

Agora já era... E o seu é o próximo.

Anônimo disse...

Shirlei, parabens!
Compartilho com voce o "sonho" que Dirceu o Filisteu tenha "consciencia" ao menos na noite da Natal.

Espero que o espirito natalino desperte nas pessoas envolvidas na morte do Celso Daniel tenham consciencia de seus atos e o "peso" facam seus curvar seus ombros pelo menos um dia no ano, ja me sentirei um pouco feliz.

Anônimo disse...

Credo, acho que vou ter que traduzir o que eu escrevi.

Anônimo disse...

Vocês lêem com os olhos de amigos. De qualquer forma, achei bom ser a primeira, já que o texto é triste (tristíssimo). Espero que os próximos sejam mais bem humorados, para nos divertirmos.

Anônimo disse...

Pô, Shirlei, eu já estava maio travada com meu conto (falta de tempo, de inspiração...) e agora vem você com esse texto? VOCÊ ACABOU DE ME INIBIR! Que que eu faço? Recebi vários puxões de orelha, e necas! Agora vou pelo menos tomar vergonha na cara e terminar (sim, eu havia começado)!

Anônimo disse...

Não sei se é sorte ou azar já ter mandado o meu texto... Tá ótimo Shirlei!